Idealismo, realismo, solipsismo e não dualidade

7 Julho 2021 / por Rupert Spira

Rupert responde a uma pergunta sobre a relação entre idealismo, realismo, solipsismo e não dualidade.

Recentemente, recebi um e-mail de alguns amigos perguntando se minha visão da não dualidade poderia ser considerada idealista ou realista. Antes de respondê-los, pedi que esclarecessem o que entendiam tanto por idealismo quanto por realismo, pois esses termos abrangem uma ampla gama de pontos de vista.

Eles definiram o idealismo como a visão de que tudo existe apenas na mente de quem percebe, seja esse percebedor um humano, um cachorro, um rato, uma formiga, uma pulga e assim por diante. A justificativa para isso, eles sugeriram, é que não temos evidências experimentais de nada fora da mente. 

Eles continuaram dizendo que a maioria das expressões de não dualidade, incluindo aparentemente a minha própria, parece equivaler ao idealismo, como eles o definiram. 

Eles então apontaram que, para ser realmente consistente em manter essa visão, seria necessário concluir que apenas nossa própria mente existe, porque, afinal, só podemos verificar experimentalmente o conteúdo de nossa própria mente individual. Ou seja, seria necessário endossar o solipsismo, a crença de que minha mente é a única mente que existe. 

Quanto ao realismo eles o definiram como a visão de que a realidade existe fora e independente da mente. Voltarei ao realismo, mas por enquanto gostaria de explorar a definição de idealismo apresentada.

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Eu gostaria de sugerir que essa definição de idealismo, que em última análise equivale ao solipsismo, é um mal-entendido do que o idealismo implica. Além disso, é um erro confundir o idealismo, assim definido, com a não dualidade. De fato, muitas pessoas inteligentes que, de outra forma, estariam abertas à possibilidade sugerida pelo entendimento não dual, ou pela filosofia perene, de pronto rejeitariam essa definição com base em sua associação com o solipsismo.

Mesmo o bispo Berkeley, o filósofo do século 18 que é um dos idealistas mais conhecidos, não se qualificaria como idealista sob essa definição limitada, pois ele acreditava que a realidade é mais do que a soma total de todas as mentes individuais. A fim de acomodar uma realidade fora de todas as mentes finitas e ainda assim da natureza da mente , ele sugeriu que aquela parte da realidade que não é percebida por uma mente finita está contida e percebida pela mente de Deus. 

Em outras palavras, de acordo com o bispo Berkeley, mesmo que ninguém perceba o carro em sua garagem, ele ainda está lá porque é percebido na mente de Deus. Portanto, Berkeley era um idealista porque acreditava que tudo existe na mente , seja uma mente humana, uma mente animal ou a mente de Deus. Mas ele não era um solipsista, porque não acreditava que tudo existisse apenas em sua mente pessoal. 

Não estou sugerindo que subscrevo a visão de idealismo de Berkeley, ou mesmo que a maioria dos filósofos idealistas o faça. Eu só quero apontar como é enganoso sugerir que o idealismo necessariamente equivale ao solipsismo. Ao fazê-lo, gostaria de resgatar o entendimento não dual dessa definição limitada e enganosa de idealismo em geral, e de qualquer associação com o solipsismo em particular, pois o solipsismo é uma forma extrema e rara de idealismo que muito poucas pessoas levam a sério. 

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Vamos considerar uma definição mais ampla e precisa de idealismo. Idealismo é um termo genérico que abrange uma ampla gama de pontos de vista filosóficos, todos, de uma forma ou de outra, sugerindo que a Mente (com m maiúsculo ) , a consciência ou o espírito é a realidade última. 

Eu uso a palavra Mente como sinônimo de consciência aqui de propósito, pois é assim que ela é frequentemente usada nos círculos filosóficos, embora nos ensinamentos não duais seja feita uma distinção entre mente e consciência. 

Por exemplo, em algumas expressões da compreensão não dual, ouvimos afirmações como “a mente aparece na consciência” ou “a mente é conhecida pela consciência”. Nessas afirmações, a mente (com m minúsculo) é considerada algo diferente da consciência, embora nela apareça e seja conhecida por ela, como um peixe no oceano. Eu mesmo uso tais declarações nos estágios iniciais da investigação. Neste caso, mente refere-se à mente finita , ou seja, pensamentos, imagens, sentimentos, sensações e percepções. 

No entanto, mais adiante na investigação, é necessário resolver essa aparente dualidade entre mente e consciência e reconhecer que a mente – isto é, a atividade de pensar, imaginar, sentir, sentir e perceber – não é apenas conhecida e manifestada na consciência, mas é a própria atividade da consciência. 

A mente, como tal, não é realmente como um peixe que aparece no oceano ; é a própria atividade do oceano . É mais uma onda do que um peixe! Neste caso, a consciência é entendida como a essência, natureza ou substância da mente.

Essas duas formas de usar a palavra “mente” talvez sejam responsáveis por parte da confusão em torno das ideias de idealismo, solipsismo e realismo, e sua relação com a não dualidade. No entanto, eu esperaria que alguém que esteja interessado nesses assuntos em relação à não dualidade, e particularmente aquele que escreve ou fala sobre eles, seja sensível e tolerante com esses dois possíveis significados de “mente” e compreenda cada um no contexto em que é usado. 

Se considerarmos a mente finita uma série de pensamentos e percepções, aparecendo e sendo conhecidos pela consciência, mas distintos dela, então a sugestão de que a realidade é ideal ou mental implicaria que ela se constitui apenas de  pensamentos e percepções. Nesse sentido, como só podemos verificar nossos próprios pensamentos e percepções, o solipsismo estaria de fato implícito. 

No entanto, se entendermos a mente finita não como um objeto ou uma série de objetos que aparecem e são conhecidos pela consciência, mas como a própria atividade da consciência, mais como uma onda no oceano do que como um peixe, então o idealismo assume um significado muito mais amplo.

O idealismo, neste caso, sugere que a realidade é da natureza da consciência , não simplesmente da natureza da mente finita. Em outras palavras, o idealismo sugere que a realidade se estende além dos limites da mente finita, mas ainda está dentro da consciência ilimitada, como uma modulação dela. 

Eu gostaria de sugerir que isso está mais próximo da compreensão normal do significado de idealismo. Na verdade, eu iria mais longe e diria que confundir idealismo com solipsismo não é apenas deturpá-lo, mas manchá-lo de forma irracional por associação. 

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Deixemos agora o idealismo e consideremos o que se entende por realismo. Realismo é um termo geral que sugere que a realidade é independente da mente finita, isto é, independente de nossa percepção dela. 

O materialismo é uma possível consequência dessa visão. Neste caso, a matéria é considerada a substância da qual tudo o que existe fora da mente finita – ou seja, o universo – é feito. No entanto, o materialismo não é de forma alguma a única ou mesmo a principal implicação do realismo. É simplesmente uma versão extrema dele, assim como o solipsismo é uma versão extrema do idealismo. 

É bem possível, por exemplo, considerar a realidade independente de ser percebida por uma mente finita e ainda, ao mesmo tempo, estar contida e ser a atividade da consciência infinita. Neste caso, como Platão, Plotino, Kant, Schopenhauer, Jung e muitos outros, [alguém que sustente essa visão] seria um idealista e um realista. 

Nesse caso, tanto o mundo exterior quanto a mente finita que o percebe seriam atividades de uma mesma consciência, e o universo como o conhecemos surgiria como resultado da interação entre esses dois segmentos da consciência. Eu diria que este é o entendimento expresso nas tradições não duais ou na filosofia perene.

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Com esse pano de fundo, posso agora responder à pergunta que meus amigos originalmente me fizeram, ou seja, se sou idealista ou realista. E a resposta é que sou ambos. Considero a realidade um todo único, infinito e indivisível, cuja natureza é a consciência ou, na linguagem religiosa tradicional, o espírito, e cuja atividade é percebida, numa perspectiva localizada, como o universo. 

Considero que a mente finita – ou seja, cada uma de nossas mentes ou quaisquer outras mentes que existam – é essa perspectiva localizada. Em outras palavras, eu sugeriria que a mente finita é uma localização da consciência infinita, dentro da consciência infinita, através de cuja atividade [ação, atuação] a consciência infinita percebe a si mesma como o universo. 

Essa visão satisfaz o critério do idealismo, de que a realidade é da natureza da consciência ou da Mente, bem como o critério do realismo, de que a realidade se estende além dos limites da mente finita. Assim, essa visão dispensa a necessidade de colocar idealismo e realismo em oposição um ao outro. 

Mais importante ainda, satisfaz duas intuições que a maioria das pessoas tem (pelo menos em certos momentos, mesmo que não as formulem nesses termos): primeiro, que há mais em nosso eu do que uma coleção de pensamentos, sentimentos, sensações e emoções fugazes, percepções; e segundo, que somos, em última análise, um com o universo.

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Meus amigos então me pediram para elaborar mais sobre minha compreensão do idealismo e sobre o que considero ser a relação entre a mente finita e a consciência infinita. 

A melhor analogia que conheço para isso é a de um sonho. Cada uma de nossas mentes [de certa forma] finitas é um campo unificado, embora limitado, e um sonho nada mais é do que a atividade dessa mente. Quando sonhamos à noite, nossa mente simultaneamente imagina um mundo sonhado dentro de si e se localiza nesse mundo como um sujeito de experiência aparentemente separado, de cuja perspectiva vê sua própria atividade como o mundo exterior, isto é, o mundo sonhado.

Em outras palavras, para manifestar o mundo sonhado dentro de si, a mente do sonhador deve ignorar sua própria natureza unificada e dividir-se, ou parecer dividir-se, em duas partes, um sujeito que percebe e uma multiplicidade e diversidade de objetos que são percebidos.

Quando o personagem sonhado olha para dentro de si mesmo, ele encontra pensamentos e sentimentos, ou seja, sua mente. Estes são pessoais e privados, e o personagem parece ter, pelo menos, um certo grau de controle sobre eles. Quando olham para fora de si mesmos, vê um mundo compartilhado e sobre o qual quase não têm controle. Sua mente lhe parece fugaz, insubstancial e em constante mudança, enquanto o mundo parece sólido, estável e confiável. 

Acreditando que sua mente está limitada ao conteúdo de seus pensamentos e sentimentos, ele percebe que o mundo deve ser feito de algo diferente da “substância mental”, e dá a isso o nome de “matéria”. Isso é reforçado porque ele percebe que, ao fechar os olhos, não percebem mais o mundo e, quando o abre, vê o mesmo mundo. Disto ele conclui que a consciência que está vendo o mundo está localizada logo atrás de seus olhos, isto é, em seu cérebro. 

Assim Ele começa a construir uma imagem de um universo material que dá origem ao seu corpo, que dá origem ao seu cérebro, que por sua vez dá origem à sua mente. E de sua perspectiva isso parece razoável.

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No entanto, quando o sonhador acorda, ele têm uma imagem totalmente diferente. Ele percebe que a consciência com a qual ele, como um personagem sonhado, percebia o mundo sonhado não apenas não estava localizada em sua cabeça. Na verdade, não estava localizado em nenhum lugar no tempo e no espaço em que os eventos e objetos de sua experiência onírica pareciam ocorrer.

Ele percebe que sua própria mente imaginou o mundo sonhado dentro de si e, esquecendo que estava fazendo isso, entrou em seu próprio sonho como um sujeito de experiência, aparentemente separado, de cuja perspectiva da atividade de sua própria mente apareceu como o mundo sonhado.

Eu diria que esta é uma analogia precisa para o relacionamento entre nós, como pessoas aparentemente individuais no estado de vigília, e a consciência infinita. Na verdade, eu diria que é mais do que uma analogia. Eu diria que o relacionamento da mente do sonhador com o personagem sonhado e o mundo sonhado é um microcosmo do relacionamento da consciência infinita com cada um de nós e com o mundo que percebemos. 

Em outras palavras, eu diria que a consciência infinita é a realidade última e que sua atividade aparece como o universo quando percebida da perspectiva localizada de cada uma de nossas mentes [finitas]. 

A única diferença entre o sonho de uma mente finita e a imaginação ou atividade da consciência infinita é que uma mente finita se localiza como um único sujeito de experiência dentro de seu próprio sonho, e a consciência infinita se localiza como numerosos sujeitos de experiência aparentemente separados, isto é, as mentes finitas de todos os humanos, animais e quaisquer outras mentes finitas que possam existir.

Como tal, o universo como o conhecemos deve sua realidade à consciência infinita e sua aparência à mente através da qual é percebido. Cada uma de nossas mentes finitas, sendo uma aparente limitação ou localização da consciência infinita, vê a atividade da consciência infinita de sua própria perspectiva limitada. Portanto, nossa mente confere suas próprias limitações a tudo o que percebe, assim como alguém que usa óculos com lentes de cor alaranjada vê a neve alaranjada. As lentes alaranjadas não criam a neve, mas a reproduzem de uma forma consistente com suas próprias limitações.

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Poderíamos dizer que o mundo é, nas palavras de William Wordsworth, “metade percebido, metade criado”. Ou seja, a realidade do mundo se estende além das limitações de nossa própria mente individual e é anterior a ela. De fato, nossa própria mente individual emergiu disso [esse algo além da mente finita e anterior a ela – a consciência ou mente infinita], como uma localização disso. Nesse sentido, é percebido pela mente. No entanto, a aparência do mundo que percebemos é “ criada”, no sentido de que é determinada pelas limitações da mente através da qual é percebida. 

O universo é, como tal, a interação entre a consciência infinita e sua localização como uma mente finita. Em outras palavras, a mente, na forma de pensamento e percepção, confere nome e forma [criando] à realidade do mundo, que existe antes e se estende além de suas limitações. 

Se apenas vemos os nomes e formas e ignoramos sua realidade, a realidade que pertence propriamente à consciência é apropriada por nome e forma resultando no materialismo. Ou seja, acreditamos que os nomes e as formas são reais por si só, feitos de uma substância chamada matéria, da qual deriva a consciência.

O materialismo é, como tal, uma forma extrema de realismo que considera o mundo [como algo] não apenas fora da mente finita, mas também fora da consciência. 

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Vejamos mais uma analogia para tentar evocar a maneira pela qual a mente finita emerge da consciência infinita como uma localização dela, e então entra em relação com a consciência da qual agora parece separada.

Imagine que a consciência vibra dentro de si, como o silêncio assumindo o som de uma única e sustentada longa nota musical. Isso seria o equivalente ao surgimento do Logos ou da Palavra. Com o tempo, essa única nota aumenta em complexidade em numerosas frequências entrelaçadas e se desenvolve em uma sinfonia.

Aquela longa e sustentada única nota original agora não é mais a totalidade da música; é uma nota entre muitas. É uma parte, não mais o todo. Temos agora o solista e a orquestra, que passam a dialogar, cada um se espelhando e se desdobrando em relação ao outro. Assim, agora parecemos ter duas entidades, uma única – o solista – e outra múltipla e diversa – a orquestra. Mas ainda é uma [única] peça de musical.

Eu diria que a realidade é, igualmente, um todo único, infinito e indivisível, cuja natureza é a consciência ou espírito, que por meio de sua própria atividade parece dividir-se em dois: um sujeito da experiência aparentemente separado e uma aparente multiplicidade e diversidade de objetos separados.

Eu enfatizo “aparente” porque, assim como o personagem sonhado e o mundo sonhado nunca realmente existem, mas são aparências temporárias da atividade da mente do sonhador, eu diria que o universo que percebemos nunca realmente existe com uma realidade independente própria. É simplesmente como a realidade eterna e infinita da consciência aparece de uma perspectiva localizada. Em outras palavras, em última análise, não existem pessoas ou coisas.

Por esta razão, em última análise, não podemos nem mesmo dizer que a realidade existe antes e além dos limites da mente finita, porque não existe uma mente finita distinta e independentemente existente da qual a realidade seja dependente ou independente. Existe apenas um todo único, infinito e indivisível, cuja natureza é… bem, no final das contas é melhor deixá-lo indefinido, porque isso não pode ser descrito referindo-se a coisas inexistentes. 

Mas seja como for que o definamos, é um todo único, infinito e indivisível, que, interagindo consigo mesmo na forma da relação sujeito/objeto, se apresenta a si mesmo como um universo. Como tal, o universo é eterno e imutável em natureza, mas temporário e em constante mudança na aparência.

Eu diria que o idealismo, devidamente compreendido, é, portanto, consistente com o realismo, e que esta é a visão do entendimento tradicional não dual ou filosofia perene. É de se esperar que esse grande entendimento, que existe há aproximadamente três mil anos e é a espinha dorsal da cultura oriental e ocidental, tenha apenas sido brevemente eclipsado pelo paradigma do materialismo que domina o mundo hoje.

Tradução: Paulo C S Passini
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